Há muito, demasiado tempo, que os catálogos representados pela famosa distribuidora francesa Harmonia Mundi eram pessimamente trabalhados em Portugal, raramente se conhecendo o que ia saindo (se é que saía), tão pouco competente era quem desses catálogos se ocupava entre nós.
Agora, felizmente, parece que tudo pode mudar e só essa boa notícia bastaria para que se justificasse esta nota sobre cinco-discos-cinco que, a título de exemplo, mão gentil me fez chegar muito recentemente.
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Dizer que o catálogo da editora suíça HatHut (e suas várias séries) é um dos mais importantes no campo do jazz, da música improvisada e da nova música contemporânea é reconhecer uma evidência, tendo em conta o já riquíssimo acervo que pode aqui ser consultado. Dedicando as suas atenções às novas obras de jovens músicos em revelação, mas também aos mais consagrados veteranos, a HatOLOGY vem demonstrando, ano após ano, a indiscutível importância das editoras independentes europeias na própria divulgação do jazz norte-americano.
Começando por Anthony Braxton, não é recente esta sua obra discográfica publicada pela HatOLOGY, antes representa (segundo julgo, porque esta é a primeira vez que a escuto) mais uma reedição de um célebre concerto realizado em 1979 com o seu quarteto no Festival de Jazz de Willisau (Suíça). Um quarteto constituído, além do mestre (em vários instrumentos de palheta), por Ray Anderson (trombone, trombone alto e outros «pequenos instrumentos»), John Lindberg (contrabaixo) e Thurman Barker (percussão, xilofone e gongs), formação que durou pouco tempo em comparação com a que Braxton organizou com Marilyn Crispell, Mark Dresser e Gerry Hemingway.
O repertório é representativo desta fase da carreira do multi-instrumentista / compositor e, sendo embora apresentado sob a forma de duas obras extensas, ele é constituído por peças de variada duração e grande abstracção conceptual, conjugadas numa organização composicional que, bem ao gosto de Braxton, vai evoluindo (às vezes justapondo-se) ao sabor das suas indicações, mas também da democrática tomada de iniciativas dos seus pares. Um disco importante para se avaliar bem o (sempre intrigante) peso da improvisação no interior da composição. E vice-versa!
Ao contrário do disco de Braxton, Afternoon in Paris é uma primeira edição da HatOLOGY e dá-nos a conhecer um saxofonista bem singular, com uma carreira ainda mais insólita. Ele é Anthony Ortega, nascido em Los Angeles, de origem índia-mexicana, próximo do som mais «duro» de outros conhecidos saxofonistas da West Coast como Art Pepper ou Herb Geller e cujo percurso (se bem que correndo em paralelo ao dos maiores músicos do seu tempo) se esfumou a certa altura, porque Ortega mergulhou no trabalho de estúdio, praticamente nada se sabendo dele na cena do jazz, excluindo porventura dois discos célebres – New Dance e Permutations – gravados em meados dos anos de 1960.
Só a leitura das interessantíssimas notas de Art Lange para a capa deste disco quase justificaria a sua compra. Mas, em termos musicais, a surpresa do encontro com esta voz instrumental de sonoridade ainda tão «jovem» (considerando que grande parte das peças foram gravadas quando Ortega tinha 74 e 77 anos de idade!) e dando corpo a improvisações altamente heterodoxas, não é menos desafiante.
Com um repertório quase inteiramente constituído por grandes standards do jazz – por onde passam peças sujeitas a um tratamento exigente como Ask Me Now, Blue Monk, Now’s The Time, Afternoon in Paris ou I’ ll Remember April – o lado insólito deste disco está bem documentado no facto de algumas peças terem sido gravadas em solo absoluto (frente a uma câmara de vídeo!) e outras em estúdio, na companhia de Kash Killion (contrabaixo, violoncelo), ainda com um outro bónus: uma gravação inédita de Ornithology, datada já de 1966 (quando Ortega tinha pouco mais de 30 anos!) em duo com o contrabaixista Chuck Domanico.
Fechando o capítulo HatOLOGY, uma outra reedição deste ano vem retomar o material gravado (também no Festival de Jazz de Willisau de 1979) pelo saxofonista Oliver Lake, um dos mais conhecidos membros do World Saxophone Quartet, aqui com o seu trio formado ainda por Michael Gregory Jackson (guitarra eléctrica) e Pheeroan akLaff (bateria).
Constituindo, em grande parte, uma remissão à matriz do free e marcado a espaços pelas inflexões dos blues, o material temático que percorre este disco representa uma afirmação clara da tradição afro-americana, isto num catálogo por vezes mais próximo da improvisação livre de extracção europeia. Mas peças demasiado longas como aquela que dá o título ao disco – Zaki –, manchada pelo pecado de querer falar muito para pouco acabar por dizer, não contribuem para tornar absolutamente indispensável a audição deste álbum.
Por último, virando-nos decididamente para a Europa, outros dois CDs distribuídos pela Harmonia Mundi e chegados a Portugal pertencem agora a dois catálogos diferentes: o histórico Le Chant du Monde e o (para mim) desconhecido O + Music.
Representando o primeiro está o álbum Électrique, pela Orquestra Nacional de Jazz (França) sob a direcção de Franck Tortiller. Como o título indica, Tortiller – ele próprio um vibrafonista e director da ONJ para um mandato de três anos (começado em 2005), como é da tradição rotativa da orquestra / cooperativa em termos de direcção – privilegiou a electrónica nos arranjos que escreveu para a orquestra (mais precisamente para a formação média de decateto) mas deu-lhes um cunho de exigência que ultrapassa, em muito, a escrita fácil que abunda neste campo.
Fortemente marcado pelo beat binário e pela evocação do jazz-fusão de meados de 1970, bem como de figuras / grupos-chave desse período – como Miles Davis, os Weather Report, os Headhunters ou a Mahavishnu Orchestra –, este álbum é com duas únicas excepções (Sometimes it Snows in April, de Prince, e o remix final de Claude Gomez) preenchido com obras originais de Franck Tortiller e segue-se a uma primeira experiência na qual o vibrafonista-arranjador já adoptara o rock de Led Zeppelin, estando especialmente indicado para os apreciadores desta corrente.
Já o jazz também familiar mas instrumentalmente mais clássico de Changing Faces é a pedra de toque deste álbum gravado pelo cantor belga David Linx com a brilhantíssima Orquestra de Jazz de Bruxelas, uma das mais reputadas big bands europeias. Pouco conhecido entre nós – embora tenha participado no Guimarães Jazz de 1998 – Linx é um cantor talentoso, de vocalização «instrumental» e scat ágil, usando um timbre metálico e uma quase-ausência de vibrato que o aproximam de Mark Murphy e, por tabela, de Kurt Elling.
São vários os arranjadores convocados pela OJB (entre os quais os portugueses Carlos Azevedo e Mário Laginha, para obras de sua autoria) e três as vozes também convidadas por David Linx para lhe fazerem companhia em alguns duetos, como Natalie Dessay, Ivan Lins e Maria João, num repertório em grande parte saído da pena de Linx. Entretanto, um aspecto negativo que aos meus ouvidos ressalta (e é mal resolvido) no trabalho de mistura e pós-produção, é por vezes um certo artificialismo resultante do facto de a gravação das vozes não ter sido certamente realizada ao mesmo tempo da orquestra.
A título de curiosidade, o vídeo-clip que podem ver abaixo, é o making of de Changing Faces, no qual se pode ouvir a introdução (escrita por Carlos Azevedo) para The Land of Joy, seguida do próprio original de David Linx-Diederick Wissels, com arranjo do mesmo Carlos Azevedo.